Wednesday, July 05, 2006 Em busca da Terra do Nunca Do diário de Scott Foutley Crescer nunca é fácil. Você se apega a coisas que já eram, mas há momentos que percebemos que está na hora de deixar para trás tudo que passou e olhar para frente. Pensar nos dias que estão por vir. A questão é: não devemos nos odiar porque envelhecemos, mas devemos nos perdoar porque crescemos. E crescer em uma família grande e cheia de tradições não é fácil. Família a gente não escolha, se adapta a ela. Sou o caçula junto com minha irmã gêmea e posso afirmar que ser o mais novo não é tão agradável como muitos afirmam. Você acaba sendo aquele que mais sofre com as mudanças, o que mais custa a aceitar que as pessoas não vivem na Terra do Nunca... ... Karen, minha irmã mais velha, parecia ter vindo de outro planeta. Pelo que eu entendia, sua função em nossa família era travar uma batalha sem fim com os nossos pais. Wayne era a ovelha negra, o dedo-duro, irresponsável, mandão e implicante. Megan era a princesa da casa, filha mais nova e tratada como um bibelô por meu pai. E eu, bom, eu era neutro. Tinha uma relação fria com meu pai e era paparicado pela minha mãe. Éramos quatro irmãos, cada um com uma personalidade, nenhuma delas em comum. Não tínhamos o que se pode chamar de bom convívio. In the chilly hours and minutes, Of uncertainty, I want to be, In the warm hold of your loving mind Não que minha relação com eles fosse inteiramente nula, mas não fora sempre assim. A gente costumava brincar juntos, a gente compartilhava as coisas, contávamos nossos segredos uns para os outros, nos fazíamos rir. A gente se divertia. Mas isso era antigamente... Cada um deles agora tinha seu mundo, eu tinha o meu e eles não queriam se encontrar. Até que naquele verão, as coisas pareceram se fundir. Era nosso 3º dia no resort e meus tios, mancomunados com a minha mãe, haviam preparado diversas atividades para a comemoração dos 85 anos da vovó Martha. Alguém, provavelmente em meio a uma diarréia mental, implantou o que eles chamavam de ‘disputa entre clãs’. Traduzindo: cada família ali era rival. Eram diversos jogos, quase como nas olimpíadas, e disputávamos por um troféu idiota. Forçados a disputar é a palavra certa. Minha família parecia ser a única indiferente a toda aquela palhaçada. Wayne só fazia resmungar, Megan dizia que queria ir pra casa e Karen deixava claro a cada instante que estava perdendo preciosos minutos de sua vida ali, quando poderia estar com os amigos em alguma manifestação que sem duvida levaria papai tira-la da cadeia depois. To feel you all around me, And to take your hand, along the sand, Ah, but I may as well try and catch the wind - Scott, preciso de um favor! – ela disse de repente, entre o intervalo do vôlei. - Que favor? – perguntei desconfiado. Karen mal falava comigo, só o necessário. - Preciso que diga ao papai e a mamãe que estou me sentindo mal, que vou passar o dia descansando. Pode fazer isso? - Pra que? Aonde você vai? - Não é da sua conta. Vai me ajudar ou não? - Não! Não vou mentir pra eles. - Ah Scotty, por favor? Juro que não lhe peço mais nada! Scotty? Ela não me chamava assim há anos... Via minha irmã me olhando com uma expressão angustiada no rosto e talvez por querer ter de volta um pouco do que tínhamos quando éramos crianças, acabei concordando. Ela saiu andando devagar e vi que desapareceu antes de alcançar o hotel. A questionei à noite sobre o que tinha ido fazer, mas ela não quis me contar. E meu resgate de relacionamento com Karen ficou por isso mesmo... When sundown pales the sky, I wanna hide a while, behind your smile, And everywhere I'd look, your eyes I'd find Mais dois dias se passaram. Karen parecia ter esquecido o favor que me pediu. Andava sozinho pelos jardins de manha cedo quando ela surgiu do meio do nada, me parando. - Preciso de outro favor seu! - Não, não adianta. Sei que você está fazendo algo de errado e não vou acobertar! - Tudo bem, esquece... Vou pedir a Megan. Papai está esperando você para o beisebol... – e fez menção de ir embora - Espera! Tudo bem, eu faço... Burro, idiota, marionete... Foram esses os adjetivos que me definiam naquele momento. Mais uma vez fui ate meus pais e lhes disse que Karen estava passando mal, não participaria das competições do dia. Competi no beisebol com papai e Wayne e assim que terminou, sai à procura de Karen. Estava determinado a descobrir o que ela andava fazendo. E não foi difícil acha-la. Do lado de fora do resort tinha uma colina, e quase escondida por arvores, tinha uma clareira. Minha irmã estava lá, com algumas pessoas que não conhecia, todos cantando, tocando violão, pintando desenhos estranhos nas pedras. Eu não estava acreditando naquilo. Menti pros meus pais para Karen se juntar a um bando de hippies? Não, fiquei possesso! Fui ate lá exigir uma explicação. - Karen! Precisamos conversar agora! - Scott! Como me encontrou? - Segui você... - Você não contou a ninguém, não é? - Não, mas... - Ah Scotty, eu sabia que podia contar com você!! Karen saltou do chão e me agarrou, fazendo com que eu me desequilibrasse e caíssemos os dois rolando na grama. Eu queria dizer a ela que aquilo era errado, que eles podiam descobrir tudo, sabia o quanto papai e mamãe tinham pavor de que seus filhos se tornassem hippies ou baderneiros, mas não consegui. Acabei passando o resto do dia com ela e aquelas pessoas. Bem, eu podia dizer no dia seguinte... For me to love you now, Would be the sweetest thing, 'twould make me sing, Ah, but I may as well, try and catch the wind Mas lógico que não consegui e aquilo acabou se tornando uma rotina. Eu agora inventava minhas próprias desculpas e subia a colina com ela. Megan e Wayne não demoraram muito a desconfiar e nos acompanhar também, sempre depois dos jogos matinais. Nós passávamos a tarde inteira na companhia daquelas pessoas estranhas, fazendo coisas completamente loucas. Eu aprendi a tocar violão, deixava Wayne me balançar em um cipó sem receio que ele fosse me atirar de um penhasco, cantávamos musicas que falavam de paz, pintávamos uns aos outros, meditávamos... Era engraçado, talvez porque nunca tenha me imaginado naquela situação. Mas meus pais não eram burros e não tardou a começarem a nos encurralar. Karen, Wayne e Megan pareciam firmes quando eram interrogados, mas eu, sempre eu, escorregava. Odiava mentir para os meus pais, tinha sempre a sensação de que eles podiam ler minha mente, que tinham um detector e iam nos pegar no flagra. Na noite da fiscalização, fui ate o quarto de Karen decidido a convencê-la a contar tudo. - Temos que contar a eles, eles vão descobrir de qualquer jeito! - E daí? - E daí? Ficou louca?? Não tem medo da reação deles?? - Não... Que mal pode acontecer? - Bem, se contarmos agora eles irão entender... Vão nos prender por uns dias, mas... - Vou estourar a sua bolha Scott. Papai e mamãe não são o sol e a lua. - Hã? - Eles são gente, como eu e você. - Errado, eles são mamãe e papai. - Olha, desculpa ter colocado vocês nessa, mas tudo vai dar certo. Você não confia em mim? - Só se fizer um favor pra mim? - O que? - Tem que me prometer que não vai mais pra colina. - Tudo bem... - Você promete? - Sim, sem colina. Tudo vai dar certo Scott, relaxa. Naquela noite, tudo parecia estar bem, as coisas pareciam estar voltando para o lugar, tudo ia dar certo. Já havia adormecido, mas acordei no meio da noite ouvindo meus pais falando na sala do chalé. Karen tinha sumido, ela tinha mentido pra mim... Wayne roncava alto, alheio ao barulho. Sai da cama e fui até eles. - Como não viu? As pessoas somem desse hotel e vocês não vêem?? – papai falava irritado com o recepcionista - Pai... Eu sei onde ela esta. - Mas como ninguém entrou aqui? Minha filha sumiu! - Eu sei onde ela esta... Eu a ajudei a sair escondido, eu... Karen tinha razão, eles nunca escutam. Eu falava repetidamente onde ela estava, mas eles me ignoravam. Dei meia volta e entrei no quarto que Megan dividia com Karen, a acordando. Em seguida tirei Wayne da cama. Não iria conseguir dormir sem ter certeza de que ela estava bem. Saímos os três com lanternas na mão a procura de Karen, tentando não pensar que talvez nunca mais visse minha irmã. Enquanto percorríamos o perímetro do resort, tentava entender porque ela havia saído da cama no meio da noite, quando tinha me prometido que ficaria quieta. When rain has hung the leaves with tears, I want you near, to kill my fears To help me to leave all my blues behind Alcançamos a colina alguns minutos depois, tendo que passar por cima do muro que cercava o resort, longe dos seguranças. Ela estava lá, sozinha. Aproximamos-nos devagar, iluminando o caminho a nossa frente. Karen se virou para nós sorrindo, mas eu não entendia do que ela achava graça. Papai e mamãe estavam preocupados e eu estava magoado, ela havia mentido pra mim, tinha feito uma promessa e a quebrara em questão de horas! - Eles notaram que sai? - Sim, lógico! Por que saiu no meio da noite? – Megan falou - Queria respirar e ficar sozinha uns minutos, pensar um pouco... - Pensar o que? Não pode fazer isso dentro do chalé? – Wayne resmungou - Pensar no próximo passo... Ainda não contei a eles, mas vou me mudar. - Mudar pra onde?? Que historia é essa? – agora era eu que falava - Vou morar com o Adam, em outro bairro. - Mas por quê?? – Megan me apoiava - Não pretendo morar com eles pra sempre, já passou da hora. Quero viver minha própria vida e sob a vigilância do papai isso é impossível. - Você tem certeza disso? Quero dizer, não acha que pode estar sendo precipitada? – arrisquei - Não Scotty, já pensei o suficiente. Mas não se preocupem, pois vocês sempre serão bem vindos na nossa casa. – falou sorrindo. Adam era o namorado de Karen, de quem papai tinha aversão. Segundo ele, Adam queria afastar sua primogênita da família. Eu ate gostava do cara, ele era bacana, mas naquele momento não estava mais gostando. Queria voltar ao que era antes no relacionamento com meus irmãos, mas a impressão que tinha era que isso ficava cada vez mais difícil de acontecer. Karen deu um longo suspiro e levantou, apanhando uma lanterna do chão e piscando em nossos rostos. Quase que instantaneamente nós três repetimos seu gesto, rindo. Karen em seguida apagou a lanterna e começou a correr, piscando-a de vez em quando. Meu irmão fez o mesmo e saiu correndo, só acendendo quando já estava quase no pé da colina. Olhei para Megan do meu lado e ela ria, piscando a luz no meu rosto e começando a correr, me puxando pela mão, exatamente como fazíamos nas noites de verão quando éramos pequenos. For standin' in your heart, Is where I want to be, and I long to be, Ah, but I may as well, try and catch the wind Não sei por quanto tempo ficamos ali, brincando pela colina. Talvez uma hora ou só alguns minutos. Era difícil contar quando se está rindo até perder o fôlego, tentando encontrar seus irmãos no escuro e sendo guiado por flashes rápidos de luz. A única coisa que sei é que naquela noite, Karen, Wayne, Megan e eu, resgatamos uma coisa que achávamos ter perdido... Nosso espírito, o espírito das crianças... O laço da memória... ********************************** N.A.: ‘Catch the Wind’, Donovan |