Monday, July 06, 2009


- Clara. Clara, acorde. – ouvi a voz de minha mãe falando baixinho, mas ignorei – Clara, sai dessa cama!

A voz suave se transformou numa voz alta e minha coberta foi arrancada sem piedade de cima de mim. Ainda tentei me manter na cama abraçando o travesseiro e o colchão, mas as mãos da minha mãe agarraram minhas pernas e fui arrastada para fora dela, parando quando cai no chão. Ela arrancou o travesseiro que ainda abraçava e o atirou de volta na cama, jogando uma toalha em cima de mim.

- Tome banho e se vista, o café já está esfriando na mesa – disse caminhando até a porta do quarto – Vamos sair em meia hora, acho bom estar pronta.
- Mãe, por favor... – supliquei ainda sentada no chão – Eu faço qualquer outra coisa que você quiser, mas não me mande pra lá. Eu não gosto de doentes...
- Isso não é uma negociação, Clara. Você esgotou a minha paciência, agora vai andar conforme a minha música. Meia hora! – ela disse enfática e bateu a porta do quarto.

Sem alternativa, fui me arrastando até o banheiro e apareci na sala 20 minutos depois, pronta para sair. Tomei um café rápido e mamãe apareceu na cozinha já arrumada para o trabalho, consultando o relógio.

- São quase 8 horas, vamos – ela estalou os dedos me apressando e sai da bancada.
- Você me acordou as 7:30 no meu primeiro dia de férias? – perguntei chocada e ela me puxou para perto dela, já abrindo a porta.
- Acostume-se, esse é o seu horário de segunda a sexta até dia 30 de Agosto. Pronta?

Mesmo contrariada, fiz que sim com a cabeça e ela me empurrou para fora do apartamento. O hospital que ela trabalhava era trouxa, então mamãe não podia aparatar no meio do corredor sem causar o pânico, o que a obrigava a ir de carro todos os dias. Era tão cedo e com as escolas fechadas para as férias, não tinha transito nenhum na rua e chegamos ao hospital em menos de 10 minutos. Todo mundo ia chamando ela enquanto passávamos pelo corredor, mas mamãe não parava e dizia que já ia voltar para ajudar. Só paramos de andar quando chegamos ao quarto andar, em frente a uma porta enfeitada com algumas cartolinas coloridas recortadas em forma de bichos e outros desenhos.

- Chegamos – ela abriu a porta e me deparei com um quarto imenso, cheio de pufes, brinquedos e aparelhos para exercício de fisioterapia.
- O que é isso? – perguntei olhando para o quarto ainda vazio.
- Nosso Centro de Terapia Infantil. Você vai trabalhar aqui junto com os outros voluntários, ajudando as enfermeiras e os outros voluntários com as crianças quando elas não estão fazendo fisioterapia. – uma mulher apareceu atrás da gente e mamãe sorriu – Ah, Mônica! Trouxe sua nova ajudante, minha filha Clara.
- Olá Clara, muito prazer – a mulher estendeu a mão para mim e apertei – Sou a chefe da pediatria, seja muito bem vinda. É sempre bom ter voluntários jovens, as crianças adoram.
- Bom, vou deixá-la por sua conta, sei que está em boas mãos – mamãe me soltou e a olhei suplicante uma ultima vez, mas ela não deu bola – Volto para buscá-la às 17h. Divirta-se.

Mamãe voltou ao elevador e desapareceu dentro dele logo depois, me deixando sozinha com a tal de Mônica. Ela sorria pra mim e me indicou o interior do quarto, não me dando alternativa senão entrar. Aquelas seriam longas férias...

*****

Dizem que quando estamos à toa o tempo demora mais a passar, mas quando temos mil coisas pra fazer, o tempo voa. Pude comprovar essa teoria durante as férias, pois o mês de Julho estava passando num piscar de olhos. Vinha trabalhar todos os dias no hospital com a minha mãe e as únicas vezes que ela e papai permitiram que saísse foi para assistir ao casamento do tio Ty. Eles teriam me liberado para o aniversário do Jamal, da Keiko e do Hiro, mas as comemorações foram canceladas por conta do nosso histórico escolar e apenas trocamos votos de feliz aniversário por telefone. Meu aniversário de 12 anos estava cada diz mais próximo, mas já não tinha expectativas de ter alguma comemoração em casa também.

Já havia passado da metade do meu primeiro mês como voluntária e era obrigada a admitir que estava gostando da experiência. A parte ruim era ter que acordar cedo todo dia, especialmente porque nessa época é inverno no Brasil e dá mais preguiça de sair da cama, mas quando chego ao hospital e sou recebida com tanta alegria pelas crianças da pediatria, a preguiça passa na mesma hora. A maioria delas mora no hospital, não podem ir para casa para não interromper os tratamentos e os pais não podem ficar lá o tempo inteiro, então elas se sentem sozinhas. Sempre que chega uma visita nova, elas ficam numa alegria contagiante, é impossível ficar de mau humor perto delas.

A maioria das crianças eram bem pequenas, a média de idade era de 7 anos, mas tinham algumas maiores e entre elas estava o Lucas, um menino de 11 anos com Leucemia. Ele era surdo e mudo e uma das enfermeiras estava me ensinando a linguagem dos sinais para que eu pudesse conversar com ele. Lucas era muito alegre e brincalhão, estava sempre sorrindo e adorava caçoar de mim quando errava algum sinal e acabava dizendo alguma besteira para ele. Mas nem sempre eu ficava o dia inteiro no hospital.

Tinham dias que as atividades terminavam mais cedo, e como minha mãe só saia às 17h, passava o tempo livre no ginásio esportivo que tinha há uma quadra do hospital. Não participava de nada, e nem podia, mas ficava sentada na arquibancada observando as equipes de basquete, vôlei e algumas vezes ginástica olímpica treinarem. Já havia feito parte daquela equipe mirim de ginástica olímpica, treinava naquele mesmo ginásio, mas tinha me cansado da exploração que eram os treinos e convenci minha mãe a me tirar da equipe. Mas apesar de não treinar mais, não havia deixado de gostar do esporte.

- Ah, ai está você – ouvi a voz da minha mãe e desviei a atenção da arena onde as meninas treinavam barras assimétricas e olhei para ela – Mônica disse que liberou você mais cedo e que tinha vindo para cá. É aqui que você se esconde quando sai antes da hora?
- Não tem problema, tem? – perguntei logo, com receio dela me dar uma bronca por sair do hospital.
- Não, tudo bem, contanto que não venha pra cá sem ser liberada pela Mônica – disse sorrindo e sentando ao meu lado – Sente falta, não é?
- Do que está falando? – me fiz de desentendida, voltando a olhar pra arena.
- Você sabe do que estou falando. Insistiu para que tirasse você da equipe de ginástica dizendo que forçavam demais nos treinos e que não queria mais ouvir grito do treinador e fiz o que me pediu, mas sei que não foi só por isso que quis sair. Só não sei o real motivo.
- Está alucinando, mamãe. Está trabalhando demais... – respondi desinteressada – Sai da equipe porque não sou cachorro pra ficar ouvindo gritos exaltados de um treinador louco. Essas meninas são corajosas de ainda estarem com ele. Já podemos ir?
- Sim, podemos – mamãe respondeu me olhando com atenção, levantando da arquibancada – Vamos, pois ainda tenho que passar no mercado.

Sabia que ela não tinha acreditado muito na minha versão para abandonar a ginástica, mas não queria falar sobre isso de novo. Foi bom enquanto durou, mas já havia tomado minha decisão e não voltaria para aquela equipe nunca mais. E eu nem sentia tanta falta assim...