Wednesday, August 05, 2009


As primeiras férias de verão significaram, para mim e Hiro, somente uma palavra: castigo.

Mamãe e papai não ficaram nada satisfeitos conosco por terem sido chamados em Hogwarts – a poucos dias do fim do ano letivo – para levarem bronca da McGonagall sobre o nosso comportamento e, por isso, elaboraram estratégias duras para nos punir. A principal arma é claro, era nos deixar entediados o suficiente para que pudéssemos “refletir” sobre nossos atos e nos arrepender. Devo dizer: eles quase conseguiram.


Julho de 2011

- Sem viagens, sem passeios, sem visitas ‘de’ ou ‘para’ amigos... – Hiro e eu estávamos sentados lado a lado, no sofá da sala, e papai em uma poltrona na nossa frente (nos observando com uma seriedade cautelosa), enquanto acompanhávamos mamãe marchar de um lado para o outro ditando as regras com a voz um tanto alterada. Ela nos fuzilava. – Ah, e é claro, sem quaisquer outros meios de entretenimento dos trouxas: tevês, computadores, vídeo-game e afins. Posso ter esquecido alguma coisa agora, mas não se preocupem. Vão estar sob a minha, nossa – acrescentou depressa desviando os olhos pra papai -, vigilância constante.

Ela parou no meio de nós dois com um dedo em riste e as sobrancelhas unidas no meio da testa. Hiro abaixou levemente a cabeça, possivelmente constrangido, e eu virei os olhos e ri. Ela pareceu soltar fumaças pelas orelhas e, antes que eu pudesse me arrepender do ato, vi que papai se mexeu desconfortável atrás dela e fez uma careta ansiosa para mim.

- Posso saber qual é a graça, “mocinha”? – Mamãe perguntou cuspindo cada palavra e abaixando ameaçadoramente o dedo até que ficasse a centímetros do meu nariz.
- Só estou me perguntando se vamos ser proibidos de ir ao casamento do tio Ty também, ou... Ao parto da Miyako?!

Disfarcei o tom de deboche na voz - pois sabia que, por mais furiosa que estivesse mamãe não nos privaria destes dois momentos, em especial, das férias - e ela pareceu murchar. Eu estava certa. Sentou-se na poltrona onde papai estava, cansada, e ele colocou as mãos sobre seus ombros, incentivando-a. Ela não deu o braço a torcer por completo, mas quando respondeu, parecia mais conformada.

- Bem... Não. Não vou impedi-los de ir a nenhum destes dois eventos, é claro. Pelo menos, por enquanto. Saiam da linha isso aqui (ela estendeu a mão, e seus dedos polegar e indicador estavam quase juntos não fosse um minúsculo espaço representativo entre eles), e eu juro que não enfiam os narizes para fora de casa. Nem que Miyako resolva dar à luz no nosso quintal! Estamos conversados?

Hiro concordou imediatamente com a cabeça e eu acabei sacudindo os ombros, em rendição. Quando eles nos liberaram para que fôssemos para nossos quartos, alguns minutos depois, minha cabeça tentava elaborar (rápido demais) maneiras de eu sobreviver praticamente dois meses inteiros trancada em casa.

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Os dias se arrastavam e eu temia enlouquecer de vez, caso o casamento do tio Ty não chegasse a tempo suficiente de me salvar. Ao contrário de mim, Hiro parecia não sentir, tanto, os efeitos do nosso castigo. Depois de mamãe ter permitido as visitas de Monique, ou eles passavam os dias todos jogando xadrez, ou ele se fechava em seu quarto e lia livros e mais livros – já que papai havia confiscado seu kit de preparo de poções, deixando-lhe em troca apenas vários livros sobre elas, das bibliotecas particulares de tio Yoshi e tio Logan. Por isso, por mais que ele não pudesse praticá-las (e infestar toda a casa com cheiros acres), se deixava envolver pelas teorias de cada uma. [Vez ou outra, o vi anotando e espalhando por seu quarto bilhetes como “não esquecer: de perguntar ao tio Yoshi sobre a “Poção de Wiggenweld”; e de como eu posso extrair o muco de verme gosmento”.]

Por sorte, o dia do casamento do tio Ty chegou, e eu estava animada de ir para o Rancho e reencontrar todos os meus amigos. Só não podia imaginar que este diria seria tão... agitado.

- Quem é aquele que está conversando com Ethan? – perguntei encarando admirada um jovem (talvez o mais lindo do planeta!) que sorria alegremente a poucos metros de onde estávamos. Haley acompanhou meu olhar e o localizou, dando uma risadinha baixa e girando os olhos. O rapaz pareceu ter notado a atenção sobre ele e se virou em nossa direção, acenando para ela discretamente ainda sorrindo. Suspirei.
- É Edward. Filho de velhos amigos dos meus pais... Ou seja: um amigo da família, de longas datas.
- Ele é tão... – não consegui completar a frase, ainda admirada. Haley riu mais abertamente.
- É, eu sei. Mas não se empolgue. Ele já é muito cobiçado, pode acreditar.

“O que não exclui minhas chances, exclui?”, eu pensava comigo mesma, sem desviar os olhos, e me distraí. Um corpo parou na minha frente me tampando Edward, e fiz uma careta levantando o rosto para ver quem era. Papai me olhava com uma das sobrancelhas arqueadas.

- Não sou tão jovem e nem tão fogoso quanto Edward, mas... antes que sua mãe perceba esse seu “interesse” todo e tenha um ataque, será que você poderia dançar com seu velho pai um pouco?

Automaticamente, desviei os olhos para onde mamãe estava sentada com tias Alex, Louise e Sam, conversando distraída, e fiquei aliviada. Sorrindo, peguei a mão de papai e ele me puxou para a pista de dança, também rindo.

- Só para constar, papai, “fogoso” já está muito fora de moda. – eu disse brincalhona e ele riu, enquanto dançávamos rock de mãos dadas e arrastando os pés no chão.
- Eu nunca vou me acostumar com a idéia de que vocês cresceram tão rápido... Acho que já estou ficando mesmo velho, não é? – ele perguntou nostálgico, mas não tive tempo de responder. Ali perto, Miyako soltou um gemido alto e angustiado de dor e corremos para ela no mesmo instante. Suas mãos estavam pregadas ao longo da enorme barriga, e ela fazia uma careta horrível enquanto lágrimas escapavam de seus olhos.

Dali para frente foi uma confusão. Lembro-me de alguns flashes rápidos: papai abraçou mamãe, que parecia muito nervosa para tomar qualquer atitude; liderados por tia Louise, tia Mirian, Morgan e um grupo de curandeiros levaram Miyako para um dos quartos do Rancho e acompanhamos ansiosos no corredor, esperando...

Foram algumas, várias, horas de apreensão – que pareceram anos! – até que um som diferente dos gritos de Miyako, tio Ty ou tio Gabriel, cortasse o ar. Um choro estrondoso anunciou a chegada de Eicca à família. [Mamãe desabou aliviada nos braços de papai, meio rindo e meio chorando, e ele também se deixou levar. Tiago invadiu o quarto no mesmo instante e, eu e Hiro nos entreolhamos brevemente, antes de o seguirmos. Se eu tinha, oficialmente, “ficado para titia”, cobraria todos os possíveis privilégios que recebia com isso.]


Agosto de 2011

Com o nascimento de Eicca, mamãe acabou se “mudando” para a casa de Miyako (para ajudá-la a se acostumar com o ritmo do bebê), deixando o controle da casa – e conseqüentemente do nosso castigo – nas mãos, supostamente “flexíveis”, de papai.
De fato, os primeiros dias da administração dele, se mostraram um tanto vulneráveis com nossos pedidos (cada vez mais apelativos) de revisar algumas das cláusulas que mamãe decretara. Já podíamos assistir tevê e conversar por rede de flú com nossos amigos... Mas, antes que conseguíssemos abordá-lo sobre mais alguns itens, a duas semanas do nosso retorno para Hogwarts, duas corujas trouxeram os grandes envelopes com nossas novas listas de materiais. E, também, com nossas notas dos exames finais do 1º ano. [Para nosso absoluto azar, papai quem as recebera...]

[...]

- Levanta Keiko. – antes mesmo que papai tivesse puxado minha coberta, eu já ficara totalmente desperta com o tom de sua voz ao me acordar. Não sabia o que tinha acontecido para ele parecer tão colérico, mas tampouco estava curiosa para descobrir.
- Aconteceu alguma coisa? – perguntei com a voz fina e consultei o relógio. O dia tinha acabado de amanhecer.
- Sim. Se vista e desça para a sala. Vamos receber uma visita e, como acredito que ela seja extremamente pontual, deve estar chegando, no máximo, em 10 minutos. Portanto, apresse-se.

Sua voz não tinha melhorado, e com uma curiosidade que deixou um gosto de mau pressentimento em meu estômago, segui suas orientações. Quando desci, vi que Hiro parecia tão desconcertado quanto eu, enquanto analisava papai quieto no canto da sala. Sem coragem para fazer mais perguntas, me sentei na outra ponta do sofá e esperei em silêncio.

PUF!

O barulho na lareira me fez sobressaltar e sufoquei um grito de susto enquanto via alguém se materializar no meio de chamas verde-esmeralda. À medida que a pessoa saía do console da lareira para o tapete na minha frente, senti meu queixo despencar involuntariamente. A tal “visita” não era ninguém menos do que Sheldon White – que batia as vestes com violência para tirar o restante de fuligem, com o nariz ainda torcido.

- Sheldon?! – Hiro foi mais rápido e perguntou com a voz embargada. Depois, virou-se para papai, confuso. O garoto endireitou os óculos no rosto antes de nos olhar com atenção (e um pouco de petulância).
- Oi. – disse pra Hiro, sem empolgação, antes de também se virar para papai. – Recebeu minha bagagem, Sr. Menken?
- Pode me chamar de Sergei, Sheldon. – papai se aproximou alguns passos, esboçando um sorriso. – Recebi sim. O elfo doméstico deixou aqui, poucos minutos antes de você chegar. Já está no quarto de hóspedes. Obrigado por ter aceitado meu convite, e minha proposta.
- Tudo bem. – Sheldon balançou os ombros indiferente.

Eu acompanhava a cena como se ela não fosse real, porque não fazia sentido algum. Sheldon em nossa casa, se hospedando a convite de papai? Piscava meus olhos com força, continuamente (para tentar me descobrir no meio de um sonho psicodélico), mas a cena continuava toda ali quando papai falou novamente – dessa vez, para mim e Hiro.

- Recebi corujas de Hogwarts com as notas finais de vocês. – ele passou os olhos por nós dois, sério. Me encolhi. – Vocês sabem que eu não classifico como “bons alunos” aqueles que respeitam todas as regras. Tudo bem, vocês exageraram, mas eu não teria nem mesmo os colocado de castigo se McGonagall não tivesse me dado uma bronca, também. Não vou exigir que virem os “senhores certinhos” da turma, mas não posso admitir que continuem como estão: tratando os assuntos acadêmicos tão levianamente... As notas de vocês – tirando as de no máximo duas matérias para o Hiro, e de uma para Keiko – não são consideradas nem “razoáveis” hoje em dia.

Papai se sentou na mesinha à nossa frente e, embora continuasse sério, agora parecia sereno (como se quisesse nos fazer entender a gravidade do assunto, mas sem nos causar traumas).

- Vocês sempre esperaram tanto por Hogwarts, sempre ansiaram tanto poderem comprar as varinhas e usá-las, praticar os feitiços, terem aulas de magia! Agora, que estão com essa chance em mãos, ignoram?! – atrás dele, Sheldon escutava o discurso com uma expressão entediada no rosto. Me senti corar. – Podem continuar pregando as peças, levando detenções, desobedecendo a regras (de maneira saudável, claro), mas vou começar a exigir, também, mais esforço e seriedade com os estudos. Se não querem sofrer com os NOM’s e os NIEM’s daqui a alguns anos, e com próximos castigos durante as férias, é bom que se preparem desde já. E esses primeiros anos são indispensáveis. Então... Posso contar com isso?

Ele nos perguntou abrindo um sorriso sem espontaneidade e Hiro concordou com a cabeça, também parecendo muito constrangido com a expressão (agora superior) de Sheldon, logo atrás.

- Tudo bem, papai, nós vamos maneirar nas brincadeiras. E vamos tirar notas melhores. – eu prometi com sinceridade. – Só ainda não entendi o que o SHELDON tem a ver com tudo isso...? – olhei pra ele um pouco atravessada e ele se empertigou. Papai se levantou, indo até seu lado.
- Bem, pedi a Sheldon que viesse passar o restante das férias conosco, pois, dessa maneira, vocês poderiam gastar algumas horas desses próximos dias com um “grupo de estudos”. Sheldon se encarregou de preparar um plano legal de revisão das disciplinas em que vocês se saíram pior e acho que, mesmo que não possam praticar com varinhas, vai ser muito útil para relembrar as teorias e dar fundamentação em todas elas.

Ao meu lado, Hiro soltou um “OH” de surpresa e nos entreolhamos. Em doze anos de vida, aquele era um daqueles raros momentos em que nos flagramos concordando um com o outro.
A idéia de ter AULAS DE REVISÃO com Sheldon por duas semanas inteiras durante as férias era tão absurda que esperamos papai pular na nossa frente a qualquer momento e dizer “peguei vocês!”. Novamente, fiquei frustrada por não estar em um sonho.

- Vamos, animem-se. Vocês podem estar odiando agora, mas futuramente vão me agradecer. E não se preocupem: a mãe de vocês não precisa ficar sabendo das notas ruins, nem das aulas de reforço. Colaborem comigo e eu colaboro com vocês... – ele deu uma piscadinha e Sheldon revirou os olhos, antes de interromper.
- Sr. Menken, - ele disse solene, ignorando a tentativa de papai de fazer com que ele ficasse mais à vontade e terminasse com todas as formalidades – só queria revisar nosso acordo... Você sabe: minha parte beneficiária.
- Tudo bem Sheldon, estou me lembrando. Aulas de manhã e de noite. Durante as tardes, você está liberado para conhecer Tokyo. Sozinho. – acrescentou depressa, antes que eu e Hiro pudéssemos nos animar com a possibilidade de termos as tardes livres de passeios, também. Não aconteceu. Ainda não conseguíamos nos animar com a presença intimidante de Sheldon ali.

Ele sorriu triunfante (o sorriso parecido com o do Grinch, quando acabava de estragar mais um Natal) e vi seus olhos brilhando de expectativa - possivelmente, programando-se mentalmente para conhecer todas as lojas de jogos e quadrinhos do Japão, em algumas horas da cada dia das próximas semanas. Hiro se mexeu desconfortável no sofá e o imitei.
Como no começo das férias, novamente vi minha cabeça trabalhando rápido demais em maneiras de sobreviver àquilo, com sanidade suficiente. Pelo menos, dessa vez, meu irmão também sofreria junto comigo, nas mesmas proporções.