Wednesday, August 25, 2010 Agosto de 2014 Todo ano, no meu período de férias, mamãe tira alguns dias de folga no trabalho para viajarmos. Só nós duas, sem mais ninguém perto para atrapalhar, nem mesmo papai. Mesmo que a viagem dure apenas dois dias e seja para uma cidade vizinha, não abrimos mão das nossas férias particulares. Como passo o ano inteiro em Hogwarts, é minha forma de matar a saudade, então não troco esse tempo que passo com ela por nada. Eu adoro viajar com a minha mãe. Ela é divertida, topa qualquer coisa e não gosta de ficar dentro do hotel, quer sempre estar na rua batendo perna para conhecer o lugar, e isso pra mim é uma companhia perfeita. Esse ano não tínhamos muito tempo. Eu voltaria para Hogwarts em menos de uma semana, então aproveitamos para conhecer Leeds, a cidade do norte da Inglaterra onde meu bisavô bruxo cresceu. Passamos três dias lá e aproveitamos para conhecer outras cidades próximas, mas como tudo que é bom dura pouco, pegaríamos o último trem naquele terceiro dia de volta a Londres. Já passava da meia noite quando o trem saiu, para uma viagem de quase 300 km de volta a cidade. No vagão éramos apenas nós duas, uma mulher grávida com uma criança e um homem de terno que devia estar saindo direto de uma reunião de trabalho. Estávamos sentadas em poltronas de frente uma para a outra, com uma mesa no meio. Mamãe lia uma revista de viagens que comprou na estação e eu me distraia vendo a paisagem escura pela janela do trem. Já devíamos estar quase em Manchester. - O que acha de irmos para a Califórnia na Páscoa? – ela perguntou de repente, me olhando por cima da revista. - Todo mundo ou só nós duas? - Acho que seu pai vai ficar brabo se deixarmos ele de fora logo na Páscoa, então todos nós. Gabriel estava falando sobre viajarmos todos juntos na primeira oportunidade que desse. - Bom, eu apoio. Que lugar da Califórnia? - Vou lhe deixar escolher. Para onde quer ir? - Los Angeles! – respondi de imediato – Por que tem programação para os adultos e é perto da Disneylândia, para as crianças. Evan e as gêmeas, claro. - Sim, claro, só Evan, Chiara e Valentina – mamãe me olhou de lado e ri – Ok, Los Angeles então. Vou começar os preparativos assim que voltar ao Brasil. - Eu sei ir sozinho! – o garotinho que estava no vagão deu um grito e nos assustamos – Não preciso de ajuda pra ir ao banheiro. - Tudo bem, mas deixe a porta aberta. Vou olhar daqui, não tranque a porta! – a mãe dele respondeu num tom preocupado. Vi o garotinho assentir e sair correndo na direção do banheiro. Mamãe me mostrou uma foto de Los Angeles na revista que estava lendo e senti um tranco. Foi tão forte que a revista voou da mão dela. Olhei pela janela e vi uma árvore passar tão rente ao vidro que recuei. O vagão deu outra sacudida violenta e vi faíscas saindo dos trilhos do lado de fora. Eu ouvi o baque antes de conseguir entender o que estava acontecendo. A última coisa que me lembro foi mulher gritando o nome do filho que estava. Depois tudo escureceu. ºººººº Quando abri os olhos, senti uma dor tão intensa que não havia percebido que eles estavam cheios de lágrima. Levei a mão à cabeça quase que instantaneamente e o sangue cobriu ela toda. Sentia-me tonta e minha visão estava tão embaçada que não conseguia distinguir nada a minha volta. Só soube que era minha mãe me puxando porque reconheci sua voz. - Como está se sentindo? – sua voz era muito preocupada. Ela apertou um pedaço de pano na minha cabeça e me fez segurar. - Tonta. O que aconteceu? O trem virou? – e ela confirmou com a cabeça. Minha visão começava a voltar ao normal e olhei ao meu redor. Estava tudo revirado e vi dois corpos jogados no chão, mas um deles parecia sem vida. Pelas janelas quebradas, agora no lugar do teto, podia ver a fumaça vinda do lado de fora, alguma coisa estava pegando fogo. A mulher grávida estava acordada e gritava desesperada. Na mesma hora entrei em pânico. - Clara, preciso que você se acalme – mamãe me agarrou pelos ombros e só não me sacudiu porque eu já estava tonta – Você está bem, não posso lidar com isso agora, preciso que me ajude. - Mas... Eu... – não conseguia nem falar, de tão desesperada que estava. Mamãe continuou me segurando firme. - Está tudo bem, vamos sair daqui, mas preciso ajudar essas pessoas antes e você vai ter que me ajudar. - Meu filho! Tenho que encontrar meu filho! – a mulher gritava do outro lado do vagão e mamãe me puxou até lá – Ele estava no banheiro quando o trem capotou, por favor, tire ele de lá! - A porta do banheiro estava aberta, mas um banco caiu na frente dela. Sou grande demais para passar por baixo, mas você consegue – mamãe me olhava com tanta confiança que me senti envergonhada por estar assustada. - Como é o nome dele? - Jeffrey. Assenti com a cabeça e caminhei cambaleando na direção do banheiro. A poltrona bloqueava a porta, mas consegui passar pelo buraco debaixo dela e encontrei o menino. Ele estava desacordado. Agarrei-o pela camisa e consegui puxá-lo para fora. Encostei o ouvido em seu peito e não ouvia nada. O pânico estava começando a voltar. - Mãe, ele não está respirando! – minha voz saiu mais esganiçada do que eu previ. A mulher gritou em desespero. - Abra suas mãos e coloque uma sobre a outra. Você vai usar só a palma, mantendo os dedos esticados para cima. Estique os braços para ter mais firmeza e apóie as mãos sobre o peito dele. Aperte quatro vezes e assopre em sua boca – mamãe ia me instruindo de longe e obedeci – A cada vez que fizer isso, coloque as pontas dos dedos indicador e médio no pescoço dele, para checar se o pulso voltou. Repeti o procedimento que ela ensinou cinco vezes. Já começava a me desesperar outra vez, quando senti um movimento fraco, mas que indicava que ele estava respirando outra vez. Comecei a chorar de alivio, mas só percebi quando mamãe secou minhas lágrimas, depois que a arrastei até onde ela estava. Um pouco mais calma, percebi porque mamãe não saia do lado da mulher grávida: ela estava presa por um ferro, que atravessava seu ombro. Mamãe vinha tentando soltá-la sem que perdesse mais sangue do que já havia perdido. - Clara, preciso de mais um favor. Tem um homem do outro lado, debaixo das bagagens. Vá checar se ele está respirando, não posso sair daqui agora. Assenti menos nervosa e fui até ele. Empurrei as bagagens para o lado e o encontrei desmaiado, todo sujo de sangue. Logo vi que tinha pulso, o que já foi um alívio. Tinha um corte feio na testa e nos lábios, mas o problema maior era em sua perna. Um dos bancos arrancados a prendia contra o chão, mas a parte de ferro estava tão imprensada contra sua perna que abriu um corte gigantesco. Seria impossível tirá-lo se lá sem cortar o banco. Ou a sua perna. Mamãe me instruiu outra vez, agora para amarrar um pedaço de pano acima do corte com o máximo de força que eu conseguisse, assim diminuiria o fluxo de sangue que estava saindo pela abertura. Ainda estava apertando o nó quando a mulher presa no ferro gritou tão alto que me assustou. Mamãe também se exaltou e voltei correndo até elas. - Mãe! – minha expressão devia ser de puro pavor, pois mamãe voltou a me segurar pelos ombros e me encarou séria. - Lembra dos exercícios que Keiko lhe ensinou, para a yoga? – assenti – Use-os agora. - Ela vai... Ter o bebê? Aqui? - Sim, e vai ter que me ajudar – ela agarrou minha mão e pôs no ombro da mulher, onde o ferro ainda estava atravessado – Pressione com toda força que tiver. Ela vai começar a fazer força e o sangue vai sair com mais rapidez. Impeça – comecei a gaguejar na tentativa de dizer que não ia conseguir – Não posso fazer os dois. Você prefere fazer o parto? Neguei na mesma hora, segurando firme o buraco no ombro dela. Cada vez que a mulher fazia força para empurrar o bebê, o sangue vazava e escorria pelo ferro e todo o meu braço. Os gritos dela eram horríveis, seria difícil dizer o que doía mais: o parto ou aquela coisa atravessando seu corpo. Mamãe teve trabalho para tirar o bebê, ele estava virado e dificultou ainda mais o processo. A mulher já estava esgotada quando ele finalmente saiu, e depois de alguns segundos, o choro ecoou pelo vagão tombado. - O nome dele... – a mulher segurava o bebê nos braços e ficava cada vez mais pálida – O nome dele... é... Luke. Mal terminou de dizer o nome, ela desmaiou. Mamãe tirou o bebê de seus braços às pressas e colocou no meu colo. Enrolei-o em meu casaco e recuei, enquanto ela sacava a varinha do bolso e dizia um encantamento que soava quase como uma canção. Não sei o que ela fez, mas aos poucos a mulher começava a recuperar a cor. O ferro continuava atravessado em seu ombro, não tinha como tirá-lo sem matá-la instantaneamente. Ela fez alguns curativos com o kit de primeiros-socorros que achou no trem para estancar um pouco do sangue e foi socorrer o homem com a perna presa. Não demorou muito e ouvimos barulho de helicópteros do lado de fora, o socorro havia finalmente chegado. Eles retiraram o bebê e o garoto desacordado primeiro, depois mamãe e eu, e um dos paramédicos a agradeceu pela ajuda. Do lado de fora podíamos ouvir o barulho das serras elétricas cortando os ferros que prendiam os outros dois. Mamãe conseguiu enviar um patrono ao papai, para que soubesse que estávamos bem, e ficamos de pé perto de uma das ambulâncias acompanhando o trabalho de resgate dos outros vagões. - Como você consegue fazer isso todos os dias? – perguntei ainda em estado de choque, enrolada em um cobertor dado pelos bombeiros. - Acho que acostumei. No começo foi difícil e muitas vezes tinha crises de choro, mas nunca pensei em desistir – ela se aproximou mais e apoiou as mãos em meu ombro – Você foi ótima hoje, não teria conseguido sem a sua ajuda. Obrigada. Olhei para ela e a abracei, afundando o rosto em seu ombro e começando a chorar, finalmente demonstrando todo o medo que estava sentindo enquanto a ajudava. Dessa vez não teria yoga ou meditação que me acalmasse. Nunca mais esqueceria aquela noite. |