Tuesday, June 12, 2012


A sala de cirurgia estava movimentada e confusa. Podia ver tia Mirian com sua varinha em punho e uma luz dourada envolvendo meu corpo, enquanto minha mãe e três médicos trouxas que sabia que ela confiava me cercavam, pisando em uma enorme poça de sangue. Suas mãos também estavam cobertas de sangue e vi que meu peito estava aberto. Podia ver meu coração batendo em um ritmo lento, um pedaço da minha costela enterrada nele. Entrei em pânico e o monitor que media meus batimentos cardíacos disparou em bipes alucinados. Todos na sala entraram em alerta e percebi que estavam me perdendo.

- Você vai ficar bem – ouvi a voz de Lucas ao meu lado e saltei assustada.
- Lucas! – depois do susto, minha reação imediata foi abraçá-lo. Ele me abraçou apertado e aparentava estar mais saudável que nunca – O que está acontecendo? Como você...?
- Nós estamos, literalmente, entre a vida e a morte – ele riu, embora eu não visse onde estava a graça – Mas você vai ficar bem, não se preocupe.
- E você não? – perguntei já sabendo a resposta.
- Minha hora já chegou. Não aguento mais lutar, meu corpo precisa descansar.
- Como pode dizer isso? Você só tem 17 anos. Não viveu nada, sua hora não pode ter chegado.
- Cada um tem uma missão quando vem ao mundo e quando sua hora chega, é porque já cumpriu seu dever. A minha missão era fazer de você uma pessoa melhor, então já posso morrer em paz – ele riu outra vez, mas o encarei séria.
- Não estou achando graça. Você não pode desistir!
- Só tem espaço pra um de nós, Clara. É o que Ele diz, então sou eu. Sua hora ainda não chegou. Só me prometa uma coisa? Quando voltar ao Brasil para o meu enterro, diga a Isabela que a amava e nunca tive coragem de admitir. Ela precisa saber.
- Não, se só tem lugar pra um, então vou eu! – ele balançava a cabeça como se estivesse achando aquilo tudo muito divertido – Você mesmo vai dizer a ela o que sente. Eu vou ficar bem, já disse ao Hiro o que sinto e descobri que ele sente o mesmo, posso morrer em paz. Você ainda tem muita coisa pra viver.
- Você não entende, não é mesmo? Meus pais já estão prontos para a minha morte, mas os seus não.
- Nenhum pai está preparado para enterrar um filho.
- Verdade, mas os meus vêm se preparando para isso desde que eu tinha seis anos. Vai ser doloroso, mas eles vão ficar bem. Se você morrer, nada serão como antes.
- Você está muito profético. Do que está falando agora?
- Se você morrer, sua amiga não vai se perdoar por ter garantido aos seus pais que ninguém morreria na guerra. E seus pais, especialmente sua mãe, jamais serão capazes de perdoar ela e sua família por isso. Eles eram contra e Artemis garantiu que você ficaria bem. Sua mãe só não tirou você à força do castelo porque acreditou nela.
- Como você pode saber de tudo isso, se estava internado aqui?
- Tenho estado fora do meu corpo desde que você saiu daqui, sei de muitas coisas. Estou pronto para morrer, Clara. Você não está.
- Não é o que está parecendo... – disse olhando para os médicos tentando me ressuscitar, sem muito sucesso – Não quero perder você.
- Você não vai me perder. Vou virar seu anjo da guarda, porque vamos ser sinceros, com a quantidade de bobagem que você vem fazendo, está precisando de um.
- Idiota – queria ficar braba com ele, mas não conseguia.
- Vou ficar de olho em você e vou vê-la se transformar em uma médica incrível. E formar uma família também, um dia, em um futuro ainda distante... – rimos juntos e senti um puxão no peito.
- O que foi isso? – olhei assustada pra ele, mas ele sorria tranquilo.
- Está na hora de voltar – ele estendeu a mão pra mim e a apertei – Foi uma honra conhece-la e um prazer chamá-la de amiga, Clara Storm Lupin.

Lucas fez uma reverência idiota, a que ele sempre fazia quando chamava alguém pelo nome completo, e começou a desaparecer aos poucos. Senti outro puxão forte e nossas mãos se separaram. Lucas desapareceu por completo e um último puxão, ainda mais forte que os outros, fez meu coração voltar a bater e os bipes do monitor voltaram ao normal. Naquele exato instante, algumas salas abaixo, Dr. Wyatt declarava Lucas morto.

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Abri os olhos com dificuldade e uma claridade intensa fez com que os cobrisse com as mãos. Um emaranhado de tubos caiu por cima de mim e a agulha presa em meu braço me espetou, me forçando a abaixá-lo outra vez. O rosto de minha mãe entrou no meu campo de visão, tapando parte da claridade. Ela tinha uma expressão de alivio estampada no rosto.

- Lucas? – foi a primeira coisa que disse e minha mãe balançou a cabeça. Não tinha sido um sonho, ele havia mesmo morrido.
- Como está se sentindo?
- Cansada – minha voz saiu falhada quando tentei responder – Meu corpo inteiro dói e me sinto enjoada.
- Você teve cinco costelas quebradas e elas perfuraram seu pulmão e o coração, é natural que esteja dolorida. E tivemos que lhe aplicar altas doses de sedativo, vai se sentir enjoada por um tempo ainda.
- Como vim parar aqui?
- Mirian tirou você da floresta depois que foi mordida, ela estabilizou seu corpo com magia e isso permitiu que a transportássemos de Hogwarts. Fizemos uma transfusão de sangue lá mesmo, enquanto não a removíamos da enfermaria, com sangue da Artemis e sangue de dragão. Foi isso que expulsou todo o veneno do vampiro das suas veias.
- Desculpa, mãe. Arte nos avisou que não deveríamos entrar na floresta atrás deles, mas corri até lá num impulso.
- Você sobreviveu, então está perdoada. Mas se colocar sua vida em risco dessa forma outra vez, talvez eu mesma a mate – ela levantou da cadeira e beijou minha testa – Agora descanse, eu volto daqui a pouco.

Ela saiu do quarto e fechei os olhos outra vez. Sentia-me tão exausta que apaguei no mesmo instante.

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Depois de dois dias internada, a dor começou a passar e as doses de sedativo tinham diminuído. Já não passava a maior parte do tempo grogue e conseguia formar frases que realmente fizessem sentido, acabando com a festa de Gabriel em gravar tudo que eu dizia para me fazer ouvir depois. Meu irmão era quem passava a maior parte do tempo me fazendo companhia e também foi meu informante sobre tudo que aconteceu depois que entrei em choque, fazendo valer seu diploma de jornalista.

Através dele soube que o pai de Justin havia falecido em combate e que Rupert e Sheldon foram os responsáveis pelos tremores de terra e todo o fogovivo, confirmando minhas suspeitas, mas que uma de suas explosões resultou na morte de Brittany e Timothy. Rupert também havia se machucado nela e mamãe tinha operado ele em Hogwarts mesmo, mas que agora ele estava bem e se recuperando. Ele contou também a forma como Arte conseguiu derrotar Cadarn e fiquei muito frustrada de não ter estado lá para ver, mas aliviada de saber que apesar das baixas, a vitória havia ficado com o nosso lado.

Gabriel havia acabado de sair do quarto para atender o celular quando ouvi três batidas na porta. Ela se abriu lentamente e, um a um, Haley, Justin, Keiko, JJ, Lena, Julian, Jamal, Arte, MJ, Tuor, Gabriela, Devon e Lenneth foram entrando. Somos sempre tão barulhentos que era estranho vê-los adentrando um cômodo naquele silêncio todo, como se qualquer barulho fosse me machucar, mas todos sorriam parecendo aliviados. De imediato notei a ausência de Rupert e Hiro, mas tive medo de questionar o motivo de não estarem com eles. Justin leu meus pensamentos e respondeu sem que eu precisasse perguntar.

- Rupert não está se sentindo bem e achou melhor ficar no castelo. E Hiro está lá fora conversando com sua mãe, vai entrar quando sairmos.
- O que houve com o Rup? – perguntei preocupada. Gabriel tinha me dito que ele estava bem.
- Ele se sente responsável pelo que aconteceu com Brittany e Timothy – Jamal respondeu – Não adianta dizermos que não teve culpa, ele não nos escuta.
- E ele também quase morreu, saiu da enfermaria hoje pela manhã – Tuor completou – Tem muita coisa pra assimilar ainda.
- E você nos deu um belo susto! – Arte se aproximou zangada – Qual parte de “não entrem na floresta” vocês não entenderam?
- Como está o Karl? – perguntei ignorando a bronca dela.
- Só deslocou o ombro, vai sobreviver. Penny está cuidando bem dele – MJ respondeu rindo e vi Jamal fechar a cara.
- Se tivesse morrido eu ia me recusar a mandar você pra luz! Ia deixá-la vagando com a gente eternamente! – Haley disse histérica e todos riram quando Keiko se benzeu.
- Justin podia fazer isso por você – respondi com a voz falhando por ter rido e ele balançou a cabeça.
- Desculpa Clara, mas agora quem manda é ela – e todos riram outra vez.
- Gabriel me contou tudo que aconteceu, sinto muito pelo seu pai – e ele assentiu, abaixando a cabeça.
- Todos da AD ganharam prêmios de serviços prestados a Hogwarts – Julian mudou de assunto depressa – Cada um tem uma plaquinha de bronze na sala de troféus.
- McGonagall nos premiou por criar uma organização clandestina? – perguntei espantada e todos assentiram igualmente surpresos.
- Nós conseguimos. Corrompemos Minerva McGonagall – JJ disse orgulhoso e começamos a rir.

Conversamos por quase dez minutos antes de minha mãe abrir a porta e expulsar todo mundo. Eles se despediram dizendo que a comissão de formatura, que era formada pelo nosso grupo, estaria me esperando voltar para concluir o que faltava, e Hiro entrou no quarto. Seu semblante era pura preocupação e, como os outros, se aproximou da cama com cautela. O Zangado de pelúcia estava na sua mão e quando o vi, ele sorriu e o sacudiu.

- Ele estava com saudade, disse que queria lhe fazer companhia – disse entregando-o a mim.
- Obrigada – abracei o Zangado, que era macio como uma almofada.
- Você me deixou apavorado, Clara. Achei que fosse vê-la morrer nos meus braços.
- Eu sei. Ficou tão assustado que se declarou – não resisti provocá-lo.
- Verdade, o pânico me forçou a falar, mas disse nenhuma mentira.
- Vamos mesmo fazer isso?
- Acho que é um pouco tarde para fingirmos que nada aconteceu e que não confessamos um pro outro o que sentimos – ele disse em tom brincalhão e ri – Eu digo: que se dane, vamos ver no que dá.
- É, que se dane. Por que não? – respondi dando de ombros e ele se aproximou da cama, me beijando.
- Viu? Até agora tudo certo.
- É, acho que vamos tirar de letra.

Hiro sentou ao meu lado na beirada da cama e me beijou outra vez. Era sempre tão bom simplesmente estar na companhia dele que não sei por quanto tempo ficamos ali, de mãos dadas, conversando sobre tudo que ia mudar de agora em diante, mas comecei a me sentir ansiosa e o monitor ao lado da cama disparou. Mamãe entrou esbaforida e Hiro saltou pra fora da cama em pânico.

- Clara, você precisa ficar calma – ela injetou alguma coisa no tubo do soro e olhava pra ela apavorada.
- O que está acontecendo, tia? – Hiro perguntou assustado, recuando para dar espaço a ela.
- Hiro, você vai precisar sair agora. Clara está ficando agitada e seu corpo quer se transformar em lobo, mas ela não pode, ainda está se recuperando e é muito perigoso. Uma transformação nesse estado pode matá-la – Hiro e eu arregalamos os olhos ao mesmo tempo – Vai ficar tudo bem, já lhe dei um sedativo, mas ela não pode ter nenhuma distração.
- Tudo bem... Vejo você na escola, ok? – ele apertou minha mão uma última vez e assenti, a respiração agitada começando a diminuir.

Hiro soltou minha mão e tirou algo do casaco, colocando em cima da mesa de cabeceira. À noite, quando o efeito do sedativo passou e acordei, vi o que ele tinha deixado. Era um origami em forma de cubo, exatamente igual ao que eu recebi quatro anos atrás, mas esse tinha a tampa aberta.

- “Estou feliz por termos aberto a tampa. Amo você.” – reconheci a letra de Hiro na parte de dentro do cubo e sorri – Estou feliz também. E sim, também amo você.

But what do you say to taking chances,
What do you say to jumping off the edge?
Never knowing if there's solid ground below
Or hand to hold, or hell to pay,
What do you say,
What do you say?



Taking Chances - Celine Dion